O abismo entre gerações é irreconciliável?

O exercício de uma paternidade sábia é uma longa jornada compartilhada, e é no caminho que adquirimos a sabedoria

Por Tiago Pereira

Quando os filhos nascem, nós imediatamente passamos a ocupar essa curiosa (e inédita) posição equidistante entre duas gerações: a dos netos e a dos avós. Um lugar privilegiado que os pais têm para assistir de camarote os extremos agridoces da vida. E quando a distância entre a primeira e a terceira geração envolve pessoas que nasceram em milênios diferentes, parece que se forma um abismo grande demais para ser superado. Ainda mais quando percebemos que o tempo entre gerações parece estar cada vez menor. Se gerações familiares giram em torno de 25 anos, o espaço geracional dentro da sociedade parece não seguir mais esse padrão e agora os intervalos se reduziram a não mais que 10 anos. A geração Z dos nativos digitais nascidos a partir do ano 2000 já deu espaço para a geração Alfa, que se iniciou em 2010, e esta já está dando espaço para a geração C, a geração dos bebês nascidos na pandemia de Covid (ou se preferir, os coronials, como já são chamados). 

A época em que você nasce não precisa moldar exatamente quem você é

Claro que os limites entre as gerações são fluidos e certamente há controvérsias entre os intervalos e as datas. Mas a pergunta que queremos fazer, no entanto, é: esse abismo intergeracional existe de fato? O cientista social Bobby Duffy parece discordar, pelo menos em parte, como afirma o subtítulo de seu livro lançado em 2021, intitulado “O mito geracional: por que quando você nasceu importa menos do que imagina” (The Generation Myth: Why When You”re Born Matters Less Than You Think, sem tradução). O autor do livro vê com preocupação a segregação etária percebida em muitas sociedades ocidentais nos últimos anos, mas atribui o problema a questões sociais mais profundas do que apenas o conflito entre gerações. Para ele, a “tensão” entre diferentes gerações não é apenas natural, mas essencial e benéfica para a sociedade, e tendo a concordar com ele. O ser humano é profundamente relacional e isso sempre deverá extrapolar a barreira geracional. É nisso que reside, por exemplo, a beleza e a dinâmica de uma comunidade cristã saudável. É nesse contato que conseguimos perceber como encontrar pontos de convergência, aprendizado mútuo e cuidado. O exercício de encontrar semelhanças entre gerações, aliás, pode ser um importante antídoto para evitar o problema de criar rótulos geracionais e acabar alimentando mais uma espécie de horóscopo moderno, como muitos que vemos por aí. A época em que você nasce não precisa moldar exatamente quem você é.

Como um típico millennial nascido nos anos 80, nutro certo orgulho de ser parte da última geração que navega com tranquilidade entre dois mundos com tempos e ritmos totalmente opostos: vi o mundo analógico das fitas magnéticas, das televisões de tubo e das fichas de telefone dar espaço para o mundo digital incessantemente conectado dos aparelhos celulares. Hoje tenho um casal de filhos nativos digitais que são geração alfa e que lidarão com robôs melhor do que eu, mas nunca entenderão a expressão “a ficha caiu”. Não sei o quanto o abismo entre mim e eles irá crescer com o passar dos anos e isso, de fato, só o futuro dirá. Mas do meu ponto referencial, quero voltar agora para o abismo que existe entre mim e a geração dos meus pais, os queridos avós, representantes paleolíticos da idealista, conservadora e disciplinada geração de baby boomers (aquela nascida no pós-guerra até o início dos anos 60). 

Dentre tantas diferenças entre nossas gerações, o exercício da criação de filhos parece ser um dos exemplos mais emblemáticos. Ser pai perto dos avós não é tarefa simples, mas talvez nunca tenha sido, apesar de a Bíblia não nos relatar o relacionamento entre Abraão e seus netos gêmeos. Criar filhos perto dos avós é viver tentando conciliar as expectativas de ambos os lados. Filhos que querem ser mimados e avós que querem mimá-los (mas que também reclamam se os mimamos). E uma parte do problema parece estar nas nossas percepções sobre autoridade e disciplina. Nenhuma das gerações despreza esses valores, e um pai millennial está tão preocupado com isso quanto um pai boomer, mas é inegável que a pluralidade de ideias na praça pública traz certa nebulosidade sobre o assunto.

Minha geração foi criada num mundo com visões ainda razoavelmente tradicionais e conservadoras sobre família, masculinidade, feminilidade e papéis do homem e da mulher. Essas visões, no entanto, cada vez mais se dissolvem no mundo contemporâneo. Vale lembrar, por exemplo, que a família típica dos cartazes americanos que vendeu essa ideia para nossos pais não passa no teste da história da humanidade e muito menos é o modelo de família cristã que as Escrituras mostram. Nesse caldeirão, os pais millennials, pertencentes a uma geração mais questionadora e flexível a mudanças que as anteriores, parecem estar numa busca constante por entender o que significa exercer autoridade sem autoritarismo, masculinidade sem opressão, disciplina sem tirania e respeito além dos pronomes de tratamento. Mas se esses valores parecem ser tão fluidos na cultura moderna e se não há limites para a literatura sobre o tema, talvez a melhor opção seja mesmo direcionar essa busca para as Escrituras que reconhecemos, enquanto cristãos, como autoridade divinamente inspirada.

Apontar e ir junto no caminho

Pais cristãos, afinal, irão concordar que a nós é exigido criar os filhos segundo a instrução e o conselho do Senhor (Efésios 6:4). Uma coisa bem diferente, porém, é entender qual é a instrução e qual é o conselho do Senhor. Uma ideia é olhar para a Lei do Senhor e para os Livros de Sabedoria, mas também entender que há um caminho importante a ser trilhado entre eles para não se confundir as coisas. A literatura hebraica de Sabedoria não é normativa – não é lei – mas quer nos mostrar que a busca pela sabedoria deve estar condicionada e submissa ao próprio Deus. Quando Provérbios 22:6 nos diz para ensinarmos “a criança no caminho em que deve andar”, nem sempre nos atentamos suficientemente à ideia de que a sabedoria só será formada durante uma longa jornada com o próprio Deus. Não há sabedoria verdadeira fora desse relacionamento. O salmista afirma que as palavras de Deus são mais doces que o mel (Salmos 119:103), e o livro de Deuteronômio nos ordena a conversar “sobre elas quando estiver sentado em casa, quando estiver andando pelo caminho, quando se deitar e quando se levantar” (Dt 6:7). Não é apenas sobre apontar o caminho, mas antes, sobre ir junto no caminho.

Toda dificuldade para entender aqueles valores universais que aparentemente confundem as gerações, no fim, devem estar submetidos a esta realidade: o exercício de uma paternidade sábia é uma longa jornada compartilhada, e é no caminho que adquirimos a sabedoria. Não é à toa que o Cristo seja ao mesmo tempo a Palavra, o Caminho e a própria Sabedoria encarnada. Uma paternidade submissa a Deus, portanto, é uma paternidade cristocêntrica. Se olhar para Cristo nos revela o que é ser verdadeiramente humano, o que é ser imagem de Deus e o que é viver como parte do Reino, então olhar para Cristo irá nos revelar como devemos ser pais (mesmo que Jesus não tenha tido filhos enquanto viveu entre nós). Por isso, as palavras do profeta a todos os homens também deveriam ser incorporadas pelos pais que querem exercer uma paternidade cristocêntrica: “Ele mostrou a você, ó homem, o que é bom e o que o Senhor exige: Pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humildemente com o seu Deus” (Miquéias 6:8). No fim do dia, minha oração é que essa seja a imagem que meus filhos vejam diariamente em mim. A imagem do Cristo que se esvazia, se humilha e que se faz servo. Que eles sejam discípulos nessa caminhada com Jesus e aprendam a amar a esse Deus que tanto os amou.

O ponto fundamental da vida é a caminhadaFinalmente, quero voltar a atenção para os conflitos entre as gerações. Se Deus em Cristo estava reconciliando consigo o mundo e nos confiou a mensagem da reconciliação (2 Coríntios 5:19), então os abismos intergeracionais podem, sim, e devem ser reconciliados. Os recortes geracionais podem nos fazer esquecer que o ponto fundamental da vida é a caminhada, e as características que definem uma geração não são, afinal, escritas em pedra. Olhando para o livro dos Provérbios, é interessante perceber como o autor vai compilando seus ensinos e conselhos ao longo de uma jornada. Salomão vive e participa das gerações de seu tempo, observa e aprende com elas enquanto caminha. Ao olhar para o livro de Eclesiastes, no entanto, o autor parece partir de outra perspectiva, um panorama da vida a partir da janela da velhice. Podemos dizer que ele está vendo que os abismos intergeracionais de sua época – como na nossa – eram pura vaidade. Se o ponto de partida do livro dos Provérbios é o temor do Senhor, esse se torna a conclusão do autor do Eclesiastes, que encontra a Sabedoria ao final de suas reflexões e conclui: “Tema a Deus e guarde os seus mandamentos, pois isso é o essencial para o homem” (Eclesiastes 12:13). 

Tiago Pereira é biólogo formado pela Universidade Federal de Viçosa, mestre e doutor em botânica também pela UFV, com pós-doutorado em Biologia Molecular e Filogeografia. Atualmente, faz parte da equipe de trabalho da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC2) como coordenador nacional dos Grupos de Estudo. É membro da igreja presbiteriana, casado com Eliza e pai de Pedro e Maria Clara.

Artigo publicado originalmente no site Ultimatoonline. Reproduzido com permissão.

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